Bom Dia - O Diário do Médio Piracicaba

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02/04/2021 12h27

Mem?rias Oper?rias

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<div id="/uploads/imagem_arquivo/341268_vilatanqueeobairroareiapreta.jpg" style="float:left; margin-top:10px; margin-bottom:5px; width:645px;"> <img alt="z" class="3" height="433.245283019" name="341268_vilatanqueeobairroareiapreta.jpg" src="/uploads/imagem_arquivo/341268_vilatanqueeobairroareiapreta.jpg" style="float:left;" title="z" width="645" /><span style="text-align: justify;">O poeta itabirano, Carlos Drummond de Andrade, em seu Bomtempo, afirma que &eacute; preciso &ldquo;esquecer para lembrar&rdquo;. &Eacute; poss&iacute;vel lembrar-se de algo que n&atilde;o sequer &eacute; poss&iacute;vel passar da mem&oacute;ria para o esquecimento?</span></div> <p style="text-align: justify;"> Nessa terceira semana de mar&ccedil;o, fui chamado por minha filha Sofia Assis para ler uma reda&ccedil;&atilde;o redigida, segundo ela, para cumprir cr&eacute;ditos de uma disciplina e para participar de um concurso de reda&ccedil;&atilde;o aqui em Jo&atilde;o Monlevade. Um trecho do texto chamou minha aten&ccedil;&atilde;o: &ldquo;o homem (...) &eacute; constitu&iacute;do pelos mesmos elementos de que s&atilde;o formados os planetas e, assim como uma &aacute;rvore, que rompeu com suas ra&iacute;zes, perde vida e volta-se, de forma ressentida, contra suas origens&rdquo;.</p> <p style="text-align: justify;"> Lembrei-me da adolesc&ecirc;ncia na Cidade Alta, quando, do quintal da minha casa, com alguns amigos, observ&aacute;vamos as assembleias do Sindicado dos Trabalhadores Metal&uacute;rgicos de Jo&atilde;o Monlevade. Alguns oper&aacute;rios (homens-m&aacute;quina) chegavam paramentados com uniformes cinzas, &oacute;culos e botinas bico de a&ccedil;o. Alguns outros vinham de casa usando uma vestimenta mais discreta e aguardavam, depois da assembleia, o momento de irem para a f&aacute;brica.</p> <p style="text-align: justify;"> Era muito curioso acompanhar, mesmo de longe, os discursos que ressoavam entre as telhas de zinco do gin&aacute;sio do Gr&ecirc;mio. No final, havia sempre um levantar de m&atilde;os seguido de palmas, gritos e silvos longos feitos entre dentes e l&aacute;bios.</p> <p style="text-align: justify;"> Quando aqueles homens seguiam de volta para casa, pod&iacute;amos ainda sentir no ar um calor de a&ccedil;o cozido em alto forno. Parecia que aqueles senhores eram feitos da mesma mat&eacute;ria de que se fazia o a&ccedil;o e que, no rosto, traziam o quente das chamas de a&ccedil;o que trefilavam, desbastavam e laminavam no Morgan . Por muito tempo, ainda pairava no ar a alma oper&aacute;ria e a ra&ccedil;a de uma luta que ficou na mem&oacute;ria dos jovens que habitavam aquele espa&ccedil;o. &Agrave; tarde, &iacute;amos jogar futsal no calor da decis&atilde;o e ao eco que ficara preso entre telhas e arquibancadas: &ldquo;gregregreveveve (...) gregregreveveve&rdquo;.</p> <p style="text-align: justify;"> Aqueles monlevadenses tinham, ao inv&eacute;s de veias, dutos de fio m&aacute;quina no cora&ccedil;&atilde;o; no c&eacute;rebro, a l&oacute;gica oper&aacute;ria e, no rosto, o calor que aquecia os fornos. Hoje, a cidade agoniza no esquecimento. H&aacute; pessoas que n&atilde;o lembram ou nem sabem que existiu o burro do Geo , a Pra&ccedil;a do Mercado, o cinema. Tudo, tudo &eacute; s&oacute; esquecimento e agora esse esquecimento avan&ccedil;a e insiste em apagar . Seria esse o homem sem ra&iacute;zes da &ldquo;fil-h&aacute; Sofia&rdquo;?</p> <p style="text-align: justify;"> Havia, sim, ra&iacute;zes. Estavam l&aacute; na origem, na tribo dos guerreiros botocudos, canibais que habitavam essas terras. Estavam nos 120 negros da senzala do engenheiro de minera&ccedil;&atilde;o Jean-Antoine F&eacute;lix Dissandes De Monlevade . Estava nos homens-m&aacute;quina, oper&aacute;rios que fizeram erguer o centro por sobre a raiz das origens e que logo deu lugar &agrave; usina. Aquele monstro de latas com sua boca faminta de sangue, suor e lucro engoliu a Cidade Alta e tudo o que restou da mem&oacute;ria da cidade: as ruas Tiet&ecirc;, Carij&oacute;s, Tupis, Tupiniquins, Timbiras, Beira Rio, Jacu&iacute;, Amazonas, Santa Cruz e muitas outras que passaram da vida para o esquecimento .</p> <p style="text-align: justify;"> O trabalho de &ldquo;desmemoriza&ccedil;&atilde;o&rdquo; continua a passos largos: a Avenida Alberto Lima perdeu os coqueiros e ganhou centenas de postes que apagam o brilho e o verde da paisagem; na Pra&ccedil;a do Povo, o chafariz da lembran&ccedil;a foi substitu&iacute;do pelo entorpecimento bruto do concreto. N&atilde;o haver&aacute; mais lembran&ccedil;as nem o que recordar, enquanto n&atilde;o forem resgatados os nomes dos nossos pais: senhor Conrado (Jos&eacute; Francisco), senhor Ti&atilde;o, senhor J&uacute;lio, senhor Papa-arroz, senhor Mauro e muitos outros que est&atilde;o sendo apagados sem o registro da hist&oacute;ria. N&atilde;o h&aacute; saudosismo quando n&atilde;o h&aacute; mem&oacute;ria, assim como n&atilde;o h&aacute; inova&ccedil;&atilde;o poss&iacute;vel sem que haja solo e ra&iacute;zes.</p> <p style="text-align: justify;"> Elizeu Assis &eacute; Doutor em Hist&oacute;ria-UFOP, Mestre em Ci&ecirc;ncias-FIOCRUZ, Educador F&iacute;sico-FAFIT, Psic&oacute;logo-UFOP e Professor-UEMG.</p>

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