06/05/2014 10h40
Lusco & Fusco - A Bruxa do Guaruj?
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Na cidade de Guarujá, em São Paulo, Fabiana Maria de Jesus foi assassinada pela boca do povo, que nesse caso, imagino, não deve traduzir a voz de Deus. A vítima de 33 anos, mãe de duas crianças, foi espancada por vários "cidadãos" no sábado e não resistiu aos traumas. Morreu na segunda-feira, 5. O massacre foi desencadeado por um boato replicado numa página de notícias no Facebook. A fofoca divulgava a existência de uma raptora de crianças cujas ações serviam a rituais de magia negra.</div>
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A tragédia é pedagógica. Escancara o Brasil. Desnuda a insanidade turbinada pela internet. Expõe o quão danoso pode ser o jornalismo irresponsável. Suga gotas preciosas de humanidade de um povo descrito no passado como cordial. Pelo que se sabe até então, Fabiana não era sequestradora e muito menos adepta do ocultismo macabro. Era portadora de distúrbios psicológicos.</div>
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As informações dão conta de que ela teria sido confundida depois que a página de notícias veiculou um retrato de uma suspeita que nunca existiu. Fabiana apanhou e morreu sem a chance de se defender, quiçá sem saber ao menos o motivo da fúria dos agressores.</div>
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Casos como esse deixam cristalino o perigo do incentivo ao justiçamento, do elogio a frases como "bandido bom é bandido morto", dos aplausos aos vingadores de araque que se assemelham aos mais medíocres covardes. </div>
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Alguns vídeos foram postados na rede. Captam o momento da chegada da polícia ao local do crime. Uma turba histérica, movida a gritos e a uma curiosidade mórbida, assiste à passagem da mulher ferida estirada em uma maca. Veem-se sorrisos, xingamentos, rostos denotando satisfação. Sentimentos como indignação, pena ou solidariedade não têm vez no terreno da insanidade coletiva. É provável que essa mesma multidão tenha assistido ao linchamento sem se mover e, além disso, tenha urrado de alegria ao ver a "bruxa sequestradora de crianças" ser condenada à morte pelos seus crimes imaginários.</div>
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Espasmos de violência medieval estão se tornando muito comuns no Brasil. A frequência de relatos da prática da "justiça dos homens de bem" assusta. Segundo matéria publicada pelo Estado de Minas, de 1980 a 2006 foram registrados 1.179 casos. Cidadãos que sob seus telhados de amianto tratam dignamente a família, que são pagadores de impostos, batedores de ponto, que levam a marmita ao campo de batalha do dia a dia, transformam-se em criminosos de praça pública. Como isso é possível?</div>
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É necessário um estudo complexo para responder à indagação acima. Fala-se de um cansaço da população com relação à fraca resposta do Estado quando o assunto é segurança pública. Assim, resta a vingança dos comuns para aplacar a indignação. Porém, o argumento tem pontos fracos. No caso de Fabiana, por exemplo, o Estado sequer foi chamado a atuar. Não havia registros oficiais de crianças sequestradas em Guarujá, por exemplo. Pode-se dizer que há um acúmulo de frustações no imaginário coletivo que vem à tona nesses casos. De qualquer forma, a resposta tem de ser cavada mais a fundo.</div>
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Algo é notório: o papel de um veículo de comunicação no acirramento dos ânimos. Não se trata de um grande grupo de mídia, porém, a página em questão tem mais de 50 mil seguidores, isso em uma cidade de cerca de 300 mil habitantes. Não há como negar o poder de influência da mesma.</div>
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Pergunto-me por que a página se prestou a divulgar um boato. Até ontem, boatos não eram notícia, apesar de o exemplo vindo da grande imprensa mostrar muitas vezes o contrário. "Em nenhum momento nossa equipe publicou foto ou se quer nota afirmando que fosse verídico o fato de uma sequestradora de crianças", defendem-se os responsáveis. A defesa é a confissão de culpa de que deram trela para a fofoca. Não afirmaram ser verdadeiro o boato, mas o publicaram. Acenderam o pavio. Atiçaram a sanha popular. Além disso, inúmeros comentários na página afirmam que foi sim divulgado um retrato de uma suspeita, posteriormente apagado.</div>
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Fica a lição para os grandes. Brincar com a fúria do povo é como brincar com fogo: corremos o risco de amanhecermos não mijados, mas ensanguentados. </div>
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Há pouco tempo houve intenso debate provocado pelos comentários de uma âncora televisiva que apoiou a ação de playboys cariocas contra um pivete pé-rapado, que foi espancado e acorrentado a um poste. Choveram argumentos contrários aos defensores dos direitos humanos, "eles se preocupam mais com bandidos do que com os cidadãos corretos", esbravejam. Porém, os mesmos que prendem um culpado a um poste hoje podem ser os assassinos de um inocente amanhã. Por isso devem ser sempre repelidos e punidos, para que não cometam barbaridades em busca de justiça. </div>
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Registre-se: depois da divulgação do ocorrido no Rio de Janeiro, aumentaram os justiçamentos no país. </div>
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Por fim, um último comentário. O caldo de tamanha ignorância leva também o tempero raivoso da internet. A virulência dos comentários que circulam pela rede é mais um sintoma de que nossa sociedade está doente. A intolerância tem desnutrido o diálogo em qualquer campo de discussão. </div>
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Essa retórica violenta, a princípio, não se relaciona diretamente com a morte Fabiana. Mas faz parte da mesma loucura que leva um grupo de pessoas a matar uma mulher em decorrência de um boato, sem qualquer prova concreta. A coragem troglodita conferida pela distância do computador integra o mesmo sistema nervoso desequilibrado que levou à covardia perpetrada nas ruas do Guarujá.</div>