25/02/2014 09h07
O Sof?
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Em minha humilde ex-morada tinha um sofá. Um sofazinho feio que doía, marrom, com largas listras beges que traziam também desenhos azuis, desses ordinários que ninguém sabe ou se importa em saber o que é. Feio mesmo.</p>
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Porém, o sofá reservava um conforto fenomenal às bundas alheias. Era macio e sua espuma lançava um abraço massageador. Modelo bicama, grande, uma genuína maravilha. Um conto de fadas, no qual o feio vira, de repente, a coisa mais cintilante do mundo.</p>
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Eu e meus botões imaginamos qual a trajetória daquele sofá. Ele chegou até aquela casa já usado. Um antigo companheiro de república foi quem o trouxe. Centenas de bundas de uso.</p>
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Primeiro imaginei um namoro juvenil surgindo sobre aquele tecido feioso. Um garoto visita a casa da paquerinha de escola, todo vergonhoso, procurando desesperadamente um buraco pra enfiar a cara. A primeira coisa que ele faz é se sentar no sofá, a convite da futura sogra. Não fala nada por enquanto, recomendação da namoradinha, que o preveniu sobre as impressões que o pai guarda com relação aos falantes. E o sofá ali, de olho em tudo, e três olhos em cima dele.</p>
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Irrompe o pai, com uma caneca de café na mão, o bigode molhado e exalando o cheiro convidativo da bebida. Senta-se ele também no sofá, que aí arria e geme. As molas gritam contra o peso exagerado. O homem olha para o menino e diz simplesmente assim: “Corto seu negócio se o peito dela começar a crescer de uma hora pra outra. Isso é coisa da safadeza, eu sei, minha mãe escolhia as noras assim, olhando os peitos. Menina nova de peito grande, pode saber, já visitou moita”.</p>
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O namoro deve ter começado, o garoto gostava da menina e ela dele. Quanto ao peito, aí não é comigo.</p>
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Virando a página, pensei em uma morte sendo contada naquele sofá. O falecido já era velho, doente crônico, câncer de pulmão. Desde que foi internado a casa estava triste, e o sofá também. O velho era seu companheiro de tardes, aqueles longos domingos assistindo Sílvio Santos, lá lá lalá lá lá lalá, o sofá adorava os calouros, o velho também. Além do que o homem era levinho, franzino, não exigia quase nada do companheiro. Os ácaros, verdadeiros donos daquele ambiente, se esbaldavam no pijama surrado do velho. Tudo era uma harmonia só. </p>
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A senhora, que não era das mais costumeiras naquela espuma – o dia corria rápido com tantas tarefas domésticas –, não resistiu à notícia e foi obrigada a sentar-se no sofá, o melhor amigo do falecido esposo. Choraram ali os três, a viúva, o sofá e a colônia de ácaros. O genro contou a desgraça de uma vez só, sem rodeios, o que fez com que as pernas da velhinha tremessem e fossem vencidas pela primeira vez em 72 anos. A queda foi confortada pela lealdade do sofá, amigo presente que era.</p>
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Deparo-me agora com um rebento sendo concebido no sofá. Ele já viu morrer e sentiu nascer. Foi berço de sabe-se lá quem, um bandido, um homem de negócios, um otário, um cara gente fina, um psicopata, um puto, um esportista, um cara que gosta de jogar damas...</p>
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Porém, outros não tiveram a oportunidade de adentrar no autódromo onde se desenrola a corrida mais sublime de todo o universo e caíram no sofá. Lá secaram e deixaram apenas uma mancha que se destacava no tecido. O sofá, obviamente, não gostou daquele rejeito em sua pele, mas não podia fazer nada além de ranger com as molas. Aliás, as molas eram parte integrante e essencial em todo processo, elas conferiam ritmo à levada dos amantes.</p>
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Quantas outras histórias existiram? Nem Deus responde.</p>
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O sofá resistiu sujo e empenado. A vida lhe exigiu horrores. Por último, foi acolhido por mendigos, sem demérito para nenhuma das duas partes. Ele foi deixado na rua devido à chegada de um irmão mais novo, mais limpinho e forte, sem ressentimentos.</p>
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Por um tempo os mendigos o colocaram debaixo da passarela do metrô da Gameleira. Por lá ficavam horas, cheirando cola e viajando, e o sofá ali, turbinando a viagem, escutando tudo, acumulando mais histórias, tornando-se uma verdadeira enciclopédia da vida miúda.</p>
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Depois de certo tempo, nunca mais vi os mendigos nem o sofá. Foram-se todos para outra sala de estar.</p>