Bom Dia - O Diário do Médio Piracicaba

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07/12/2015 11h31

A lama que transformou gente em n?mero

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<p> Quando estive em Mariana pela primeira vez ap&oacute;s a trag&eacute;dia do rompimento da barragem da mineradora Samarco, controlada pela Vale e a australiana BHP Billiton, presenciei a desola&ccedil;&atilde;o de gente que havia perdido tudo pelo mar de lama que arrastou e destruiu o que havia pela frente. Eu estava a cerca de 60km de Bento Rodrigues e n&atilde;o fazia ideia, na ocasi&atilde;o, das perdas do povo de l&aacute;. Mortos e desaparecidos eram um fato cada vez mais crescente: os n&uacute;meros eram sempre corrigidos. O que me incomodava, al&eacute;m das perdas noticiadas, era exatamente isso: eram n&uacute;meros e n&atilde;o nomes.</p> <p> Embora listagens haviam sido publicadas em alguns ve&iacute;culos, a impress&atilde;o que eu tinha &eacute; que a import&acirc;ncia dada &agrave;s pessoas que morreram ou estavam &ndash; algumas ainda est&atilde;o &ndash; desaparecidas era menor que os bens materiais. Algo que constatei quando resolvi, por conta pr&oacute;pria, dar nomes e rostos a &ldquo;alguns n&uacute;meros&rdquo;.</p> <p> A cada pessoa que eu ligava ou abordava pessoalmente procurando informa&ccedil;&otilde;es sobre o paradeiro dos familiares dessas v&iacute;timas, a conversa sempre acabava com a frase: &ldquo;mas aqui tem um monte de gente que perdeu tudo que tinha, mas morte n&atilde;o tem n&atilde;o.&rdquo;</p> <p> Quando um amigo, que viajou comigo para Mariana, ligou para o Secret&aacute;rio Adjunto de Defesa Social da cidade, Jo&atilde;o Paulo Felipe, para perguntar sobre o paradeiro dos familiares e, tamb&eacute;m, sobre as v&iacute;timas, a resposta: n&uacute;meros. Ele tamb&eacute;m disse que talvez a Defesa Civil poderia nos ajudar a conseguir o que procur&aacute;vamos. Mas n&atilde;o foi preciso, fui direto aos hot&eacute;is e ali, a solidariedade dos moradores de Bento Rodrigues citava nomes.</p> <p> Com um bom tempo de coversa por ali, descobri o paradeiro dos parentes da&nbsp; Emanuelly Vit&oacute;ria, de apenas 5 anos, que amava ir a escola e assistir &ldquo;O rei Le&atilde;o&rdquo;.&nbsp; Do Ailton Martins dos Santos, 55 anos, eternizado nas lembran&ccedil;as do filho como um grande pai. Da Maria Eliza Lucas, 60 anos, uma senhora guerreira que enfrentou diversas doen&ccedil;as na vida e que, segundo o filho, &ldquo;estava vivendo os melhores dias da sa&uacute;de dela&rdquo;. E do Daniel Altamiro de Carvalho, 53 anos, um pai e esposo dedicado, que fazia de tudo pra cuidar da fam&iacute;lia.</p> <p> <strong>Pelas ruas de Mariana, Bento Rodrigues</strong></p> <p> Na rua do Hotel Provid&ecirc;ncia, onde grande parte dos moradores afetados pela trag&eacute;dia est&atilde;o hospedados, se v&ecirc; a comunidade de Bento Rodrigues. Em frente ao local as conversas s&atilde;o cheias de emo&ccedil;&otilde;es e lembran&ccedil;as de tudo que se foi.</p> <p> Enquanto uma m&atilde;e explica para o filho que seus brinquedos foram levados pela lama, um homem lamenta: &ldquo;de bem material eu n&atilde;o perdi nada, morava na parte alta de Bento. Mas perdi minha vida, meu passado&rdquo;, explica, dando import&acirc;ncia &agrave; sua hist&oacute;ria.</p> <p> Do outro lado da rua, um senhor com seu r&aacute;dio de baixo do bra&ccedil;o escutava alto a can&ccedil;&atilde;o &ldquo;O homem de Nazar&eacute;&rdquo;, do Chit&atilde;ozinho e Xoror&oacute;. &ldquo;Ele modificou o mundo inteiro&hellip; Ele revolucionou o mundo inteiro&hellip;&rdquo;, tocava a m&uacute;sica, dando esperan&ccedil;a ao cora&ccedil;&atilde;o do velho cheio de f&eacute;. Pr&oacute;ximo a ele, um grupo de jovens conversava sobre um torneio que futebol que ia acontecer em Mariana, e o time de Bento iria jogar: &ldquo;&eacute; bom, pelo menos alivia as ideias&rdquo;, disse um deles, com a expectativa de se livrar, pelo menos por algumas horas, das lembran&ccedil;as.</p> <p> Tentando existir no meio do caos</p> <p> Maria Eliza lutou contra a obesidade, diabetes e trombose, venceu. Emagreceu, deixou a insulina e aguardava pela cirurgia pl&aacute;stica para retirar as peles excedentes. Cuidou da sa&uacute;de e aproveitava a velhice para fazer o que mais gostava: pescar.</p> <p> Era o que ela estava fazendo quando foi arrastada pela lama. Do local em que ela estava n&atilde;o restou nada. Os tanques, os peixes, a casa, tudo se foi lama abaixo, &ldquo;t&aacute; tudo liso&rdquo;, conta o filho, Wanderley Lucas, 38 anos.</p> <p> O grande dilema na hist&oacute;ria de Maria e do seu filho, que ainda a aguarda, &eacute; que ela n&atilde;o estava entre os n&uacute;meros. Ela morava em Contagem, regi&atilde;o metropolitana de Belo Horizonte, portanto, n&atilde;o estava na lista de moradores de Bento Rodrigues, muito menos na lista de trabalhadores da Samarco. Fora do contexto do caos seu nome n&atilde;o podia ser inserido entre os desaparecidos. Ali, Maria n&atilde;o podia existir.</p> <p> Foram mais de 30h, segundo Wanderley, para conseguir fazer a ocorr&ecirc;ncia. Mais de 30h para provar que sua m&atilde;e havia sido &ldquo;tragada pela lama&rdquo; que levava tudo o que estava pela frente (e continua levando) sem nenhuma piedade. Mais de 30h para afirmar o que ele jamais gostaria de dizer: &ldquo;minha m&atilde;e desapareceu!&rdquo;.</p> <p> &ldquo;Eu tive uma dificuldade enorme para registrar o desaparecimento dela, mesmo tendo relatos de pessoas que viu ela sendo tragada e levada pela lama&rdquo;, conta. Somente no dia 7 de novembro, pela manh&atilde;, 2 dias ap&oacute;s a trag&eacute;dia, Maria passou a fazer parte da lista de desaparecidos, depois do filho ir &agrave; Defesa Civil, Samarco, Policia Militar e, cansado, &agrave; m&iacute;dia.</p> <p> O que resta para Wanderley, al&eacute;m de esperar, s&atilde;o as lembran&ccedil;as. Nelas, Maria se eterniza. &ldquo;As oportunidades de fazer o que ela mais gostava juntos foi maravilhoso. S&atilde;o lembran&ccedil;as que jamais ser&atilde;o apagadas da mem&oacute;ria&rdquo;.</p> <p> <strong>Cinco anos de hist&oacute;ria</strong></p> <p> Wanderley Isabel, 24 anos, fugia com os filhos Emanuele e Nicolas, 3 anos, mas foi atingido pela lama que quebrou suas duas pernas. No golpe, a filha escorregou de seus bra&ccedil;os. A menina foi encontrada a cerca de 70 km do local onde foram atingidos. Ele n&atilde;o p&ocirc;de participar do enterro, estava sendo operado num hospital em Santa B&aacute;rbara, a 76 km de Mariana. E ainda estava internado no dia em que conversei com sua esposa, P&acirc;mella Raiane, 21 anos.</p> <p> A m&atilde;e estava na escola na hora em que tudo aconteceu, deu tempo de correr, e do alto de Bento Rodrigues, ela assistia a trag&eacute;dia, em desespero. &ldquo;Eu queria ir l&aacute; pra ver como eles tava, mas os professores n&atilde;o deixavam, diziam que eu ia morrer. Me restou esperar&rdquo;, conta.</p> <p> P&acirc;mella tinha 15 anos quando engravidou e precisou parar de estudar. Antes da trag&eacute;dia, m&atilde;e e filha caminhavam rumo &agrave; realiza&ccedil;&atilde;o de um sonho: ambas se formariam este ano. Emanuele iria para a primeira s&eacute;rie e a m&atilde;e completaria o nono ano. &ldquo;Mas, aconteceu&hellip;&rdquo;, lamenta.</p> <p> A lama levou a jovem m&atilde;e a uma condi&ccedil;&atilde;o sem nome. Da noite para o dia ela se encontrou num v&aacute;cuo onde n&atilde;o existe uma nomenclatura que classifique seu atual estado. Como diz M&aacute;rcia Noleto, fundadora do Instituto M&atilde;es Sem Nome: &ldquo;&hellip; quando se perde um filho, n&atilde;o h&aacute; nome no dicion&aacute;rio para qualificar esse seu novo status quo&rdquo;.</p> <p> Em sua nova condi&ccedil;&atilde;o, a m&atilde;e sem nome segue tentando se reinventar. Tateando os dias com muito cuidado para entender o que a vida lhe reserva. E neste caminho, sua bagagem &eacute; feita de lembran&ccedil;as:</p> <p> <strong>Pai de fam&iacute;lia</strong></p> <p> Daniel era funcion&aacute;rio de uma empresa terceirizada da Samarco, trabalhava na barragem no dia em que ela se rompeu. Foram dias a fio sem not&iacute;cias, sem ao menos uma pista de onde ele poderia estar. Situa&ccedil;&atilde;o dif&iacute;cil para a fam&iacute;lia, uma vez que ele nunca deixou de avisar seu paradeiro mesmo que fosse atrasar pouco tempo do combinado.</p> <p> Sua esposa, T&acirc;nia Penna Carvalho, 48 anos, se lembra do esposo cuidadoso, emocionada. Daniel esteve ao lado dela durante todo o seu recente tratamento contra o c&acirc;ncer, &ldquo;ele sempre me ajudou e acompanhou&rdquo;, conta. Al&eacute;m disso, era um bom pai, dedicado, &ldquo;ele sempre pensou no futuro das meninas&rdquo;.</p> <p> O bom pai foi encontrado antes do fechamento da reportagem. Seu vel&oacute;rio e enterro foram dia 28 de novembro, o que tirou T&acirc;nia da afli&ccedil;&atilde;o di&aacute;ria de imaginar que &ldquo;no momento em que ele mais precisava dela, ela n&atilde;o podia estar l&aacute;&rdquo;. Seu desespero era tanto que, se pudesse, &ldquo;cavava a lama com as pr&oacute;prias m&atilde;os&rdquo;.</p> <p> Ailton foi outro pai que se foi. Sua hist&oacute;ria na trag&eacute;dia se difere da de Daniel apenas pelo fato de que ainda n&atilde;o foi encontrado. As lembran&ccedil;as no cora&ccedil;&atilde;o do filho, Emerson dos Santos, 30 anos, falam do grande pai que ele foi:</p> <p> <strong>Mobiliza&ccedil;&atilde;o</strong></p> <p> As fam&iacute;lias encontraram refor&ccedil;o junto ao Movimento dos Atingidos por Barragens &ndash; MAB, um grupo que, h&aacute; 20 anos, atua principalmente junto &agrave;s popula&ccedil;&otilde;es que s&atilde;o atingidas pela constru&ccedil;&atilde;o de barragens. Com o aux&iacute;lio deles se organizam a fim de conseguirem garantias perante a lei.</p> <p> O movimento vem intervindo na trag&eacute;dia do rompimento das duas barragens da Samarco, em Mariana. Abaixo, a Coordenadora Estadual do Movimento, Alexsandra Maranho, 28 anos, explica um pouco das a&ccedil;&otilde;es do MAB na regi&atilde;o:</p> <p> <strong>Entre mortos e desaparecidos</strong></p> <p> Os dias em Mariana me fez lembrar um trecho da obra &ldquo;A Misteriosa Chama da Rainha Loana&rdquo;, de Umberto Eco: &ldquo;era como se acordasse de um longo sono e, no entanto, estava ainda suspenso em um cinza leitoso. Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se n&atilde;o visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda n&atilde;o via nada, exceto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia&rdquo;. Em meio a tantas mem&oacute;rias, talvez essa seja a melhor maneira de definir meu tempo ali.</p> <p> Sobre o total de n&uacute;meros que n&atilde;o me deixavam esquecer, escolho n&atilde;o citar. Prefiro os nomes:</p> <p> Ant&ocirc;nio Prisco de Souza</p> <p> Ailton Martins dos Santos</p> <p> Claudemir Elias dos Santos</p> <p> Claudio Fiuza</p> <p> Daniel Altamiro de Carvalho</p> <p> Emanuele Vit&oacute;ria</p> <p> Edinaldo Oliveira de Assis</p> <p> Edmirson Jos&eacute; Pessoa</p> <p> Sileno Narkievicius de Lima</p> <p> Marcos Xavier</p> <p> Marcos Aur&eacute;lio Pereira Moura</p> <p> Mateus M&aacute;rcio Fernades</p> <p> Maria Elisa Lucas</p> <p> Maria das Gra&ccedil;as Celestino da Silva</p> <p> Pedro Paulino Lopes</p> <p> Samuel Vieira Albino</p> <p> Thiago Damasceno Santos</p> <p> Vando Maur&iacute;lio dos Santos</p> <p> Waldemir Aparecido Leandro</p> <p style="text-align: right;"> <em>historiaincomum.com.br</em></p>

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