Bom Dia - O Diário do Médio Piracicaba

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06/06/2014 14h38

Lusco Fusco - A Corrida

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<p> O batalh&atilde;o de atletas estava posicionado. O cheiro da adrenalina borrifado pelos lances de ansiedade t&iacute;picos das largadas era sentido a l&eacute;guas de dist&acirc;ncia. Olhares trocados, conversas amarelas, votos de boa sorte, alongamentos fingidos, cadar&ccedil;os j&aacute; amarrados sendo conferidos. Um roteiro ensaiado que precede eventos &eacute;picos. Dentre as centenas de her&oacute;is, um deles buscava a reden&ccedil;&atilde;o. Era a &uacute;ltima chance de dobrar o fracasso. A tens&atilde;o transparecia no semblante de Jil&oacute;. Seus mirrados m&uacute;sculos ganharam o peso de rochas. &ldquo;N&atilde;o posso decepcionar o mundo na Corrida R&uacute;stica de S&atilde;o Miguel&rdquo;, cobrava-se.</p> <p> Seis meses antes, Jil&oacute;, filho mais novo e dengoso de Geraldo Simpl&iacute;cio, havia disputado a Meia Maratona Internacional das Peneiras. Na ocasi&atilde;o, a confian&ccedil;a de patrocinadores, f&atilde;s, familiares e amigos esvaiu-se quando, percorridos 12,7 quil&ocirc;metros, o valente tombou. Uma pisada em um cascalho de grande escala, postado em trecho de declive, causou uma tor&ccedil;&atilde;o em seu tornozelo esquerdo. As l&aacute;grimas que escorreram n&atilde;o minaram da dor, mas sim da interrup&ccedil;&atilde;o de um sonho.</p> <p> Avancemos no tempo e na perseveran&ccedil;a. Poucos segundos antecediam a largada da Corrida de S&atilde;o Miguel. Jil&oacute; postou-se em um ponto neutro no mar de corredores, nem na cabeceira, muito mesmo na rabeira. Pontadas de dor ainda eram sentidas. O estampido foi ouvido e em seguida o trote dos atletas invadiu as ruas piracicabenses. Jil&oacute; partiu e, seguindo-o, milhares de olhares desconfiados. &ldquo;Ele nunca conseguir&aacute;&rdquo;, comentou Ot&aacute;vio, em tom de esc&aacute;rnio, dirigindo-se a Jefrin, que por sua vez ofereceu apenas um sorriso malicioso irrigado por uma dose.</p> <p> Os grandes se escoram na sabedoria, s&atilde;o homens estrat&eacute;gicos. Jil&oacute; n&atilde;o partiu desembestado como outros tantos. Manteve o passo, as batidas card&iacute;acas controladas, a mente focada. Aquele homem carregava dentro dos t&ecirc;nis a certeza de que era capaz. Logo no in&iacute;cio da prova, na passagem pelo cemit&eacute;rio, advers&aacute;rios de alto gabarito avan&ccedil;aram e abriram metros e metros de conforto. Color&eacute;, Viquinha e outros talentos do esporte n&atilde;o deixaram rastro. O esfor&ccedil;o sobre-humano marcava o contorno da face de Jil&oacute;, que estava sujeito a tudo, menos a fracassar novamente.</p> <p> Por ser um maratonista experiente, Jil&oacute; domou o impulso de acelerar. Sabia ele que mais cedo ou mais tarde o equil&iacute;brio marcaria a prova. As passadas firmes seguiram a toada inicial e a camisa branca, que carregava a logomarca da MK Pantuza, ganhava, pouco a pouco, redondas manchas de suor, suco salgado que descia pelo short de nylon azul e descansava nas meias soquete brancas, de el&aacute;stico frouxo.</p> <p> Ao longo do percurso, crian&ccedil;as arteiras zombeteavam do homem que, pouco tempo depois, distorceria a l&oacute;gica e provaria a todos que o imposs&iacute;vel &eacute; apenas uma palavra de 10 letras.</p> <p> No contorno do hotel da Samitri deu-se o a guinada espetacular. Um a um, Jil&oacute; superava os agora esbaforidos concorrentes, mantendo sempre os olhos fixos no pr&oacute;ximo metro a ser vencido. Os avan&ccedil;os ol&iacute;mpicos daquele extraterrestre deixaram todos boquiabertos. A altivez do seu trote n&atilde;o abria brechas para ila&ccedil;&otilde;es: o campe&atilde;o havia voltado.</p> <p> Na parte final da corrida, apenas Viquinha separava Jil&oacute; da vit&oacute;ria. Faltavam 250 metros para a chegada e 37 para chegar ao primeiro lugar. Uma tarefa herc&uacute;lea. Jil&oacute; sabia que seu primo estava focado e preparado. Viquinha passou dois meses nos altiplanos bolivianos com o intuito de incentivar o organismo a produzir uma quantidade cavalar de hemoglobina.</p> <p> A mente obstinada de Jil&oacute; o transportou para o ano 490 a.C. Jil&oacute; bebeu o sangue de Fil&iacute;pides, o soldado grego que salvou seu povo correndo os 42 quil&ocirc;metros que separavam Marath&oacute;nas de Atenas. O corpo franzino e acanhado daquele menino nascido de Maria mostrou todo o vigor que guardava.</p> <p> Faltando apenas 28 metros para linha de chegada, Viquinha foi engolido. Sem entender a situa&ccedil;&atilde;o, restou-lhe balan&ccedil;ar a cabe&ccedil;a negativamente e terminar em segundo, posto honroso para os que disputam com Jil&oacute;, o fen&ocirc;meno.</p> <p> Assim que Jil&oacute; cruzou a linha de chegada, Valdecir arrancou como uma flecha da pracinha e foi ao encontro do irm&atilde;o ca&ccedil;ula, acolhendo-o em seus bra&ccedil;os, sem conseguir conter as l&aacute;grimas. &ldquo;Meu irm&atilde;ozinho, meu irm&atilde;ozinho&rdquo;, bradava aos quatro cantos. Tet&ecirc;, aquela que vir&aacute; a ser a herdeira do majestoso trono esportivo esculpido pelo pai, foi entregue ao campe&atilde;o.</p> <p> A festa seguiu. Rep&oacute;rteres de todo o mundo queriam uma declara&ccedil;&atilde;o, se poss&iacute;vel raivosa, que contivesse desabafo, emo&ccedil;&atilde;o, orgulho, regozijo. Algo que abalasse a ordem do planeta. Ainda exausto e bebericando uma Coquinha 250 ml, paga por Valdecir, Jil&oacute;, sem arredar o p&eacute; de sua natural maneira de ser, simplesmente disparou na dire&ccedil;&atilde;o dos microfones: &ldquo;S&oacute; falo se rolar um troco. Nesse mundo nada &eacute; de gra&ccedil;a. Muito menos a gl&oacute;ria&rdquo;.</p> <p> &nbsp;</p> <p> <em>Esta coluna, escrita em 2011, &eacute; uma homenagem ao esfor&ccedil;o de Jil&oacute;, que anda correndo muito.&nbsp;</em></p>

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