19/11/2013 18h00
Lusco Fusco - A maldi??o de Djavan
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Senhores, tudo indicaria que neste encontro escreveria sobre o que anda na boca da imprensa - suspeito que não na do povo - nos últimos dias, o caso do mensalão, neologismo com aderência maior que a gonorreia nos áureos tempos do Guarda-Chuva, casa de alta costura de Rio Piracicaba. Porém, sinto-me na obrigação de tratar de algo muito mais pestilento e perigoso para a cidadania nacional: os cantores de barzinho que fazem covers de Djavan.</p>
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Tudo começa quando aquele pobre garoto que aspira ser artista ganha de presente, geralmente no aniversário, um violão Giannini Nº 17, Série Estudo. O êxtase toma conta do rosto juvenil e a vontade de produzir sons harmoniosos leva o ingênuo a socar as cordas de náilon durante toda a noite, uma mostra da trilha sonora do inferno.</p>
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O próximo passo é se matricular em aulas de música. No interior, na maioria das vezes, os aprendizes buscam professores de idade mais avançada, que lecionam nas próprias casas. A primeira música a ser executada passa ao largo de sucessos do rock, ritmo que embala os sonhos de grande parte dos futuros virtuoses. Composições de três acordes, como Pobre Menina, de Roberto Carlos, fatalmente deverão ser decoradas, aumentando em muito a capacidade do saco dos familiares, incluindo os do sexo feminino.</p>
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Os que querem uma vida de fama, mulheres (ou homens), aperitivos lisérgicos e demais cerejas do mainstream sempre buscam inspiração nos solistas cabeludos. Esses loucos sabem fazer as meninotas delirarem com a estridência provocada pela dedada bem conduzida no braço do instrumento.</p>
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Então, presume-se que nada é mais desestimulante que intermináveis lições de violão base, que culminam com a frase fatal: "Você seria um bom músico de acompanhamento, quem sabe um baixista", ao passo que a frase aguardada seria "seu talento para solos é fenomenal". Depois dessa revelação começa a derrocada. A verdade do mundo é que as luz principal do palco não está reservadas para os mortais.</p>
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Aqueles que não desistem são tragados para o universo dos bares com audiência anêmica. Aprendem a tocar, alguns até muito bem, mas restam-lhes os cacos. Então, tal qual usuários da erva que avançam para o crack, estes futuros ex-popstars começam a comprar caderninhos de cifras recheado com o mel insosso de certa MPB. E lá está Djavan.</p>
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"Não vá levar tudo tão a sério / Sentindo que dá, deixa correr / Se souber confiar no seu critério / Nada a temer / Não vá levar tudo tão na boa / Brigue para obter o melhor / Se errar por amor Deus abençoa / Seja você". Está feito o estrago. Na mesma estrofe o louvado compositor pede para você relaxar, mas ao mesmo tempo não se deve levar tudo numa boa e é preciso brigar pelo melhor. Isso confunde a cachola.</p>
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Depois de meses decorando esses ecos incompreensíveis, chega o momento da estreia em um bar. Quatro mesas ocupadas no salão. A renda do dia virá da portaria, 50% da receita obtida com a entrada de R$ 5. Na primeira batida de cordas, microfonia. Um tonto grisalho grita por mais um rum. Nova tentativa. A voz ainda dura lança no ar "Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro...". Ouvem-se gritos de desespero no banheiro.</p>
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E assim será a vida desse pobre aspirante a músico. Uma maldição iniciada com o Giannini Nº 17.</p>
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No 100º show descortinado no mesmo bar da estreia, pois o lutador ainda não conseguiu tocar em outro lugar, o repertório continua o mesmo, embasado na sólida influência das revistinhas de cifras. E, para iniciar a noite especial, nada mais apropriado que esta aqui: "Assim / Que o dia amanheceu / Lá no mar alto da paixão / Dava pra ver o tempo ruir / Cadê você? / Que solidão! / Esquecera de mim?"</p>
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Sim meu jovem, o público resolveu se esquecer de você e deixou somente os aplausos surdos de mesas vazias. Você insistiu em Djavan.</p>
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Apenas uma vez em minha vida vi uma reação digna ante os profanadores da música de bar. Um amigo professor, deveras bicudo, simplesmente desconectou o cabo da aparelhagem de som e bradou com a ira de Aguirre: "Você só toca merda cara, e muito mal". Fez-se a justiça dos homens.</p>
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Aos apreciadores de Djavan, não peço desculpas. Cada um faz do ouvido o que bem entender, bem como com aquela outra peça da anatomia humana. Porém, afirmo que este cantor/compositor/rastafári/romântico anda destruindo músicos iniciantes Brasil afora. Ele tem acompanhantes, mas evitarei citá-los para que não me expulsem do Clube da Esquina.</p>
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Quando ao mensalão... "Eu quero mesmo é viver / Pra esperar, esperar / Devorar você".</p>
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Contato: thobiasalmeida@gmail.com</p>