17/09/2013 13h00
Amizade Rompida
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Nós, que vivemos ou temos relações com esse canto de Minas Gerais, sabemos muito bem o que é dirigir pela BR-381, essa cobra venenosa cuja pele é feita de asfalto. Todos nós conhecemos de cor e salteado aquela curva danada perto de Nova União, a serra de São Gonçalo, o trevo de Itabira, o retão solitário do Campolar e por aí vai. Há pelo menos 13 anos circulo rotineiramente por essa rodovia que se acostumou a beber sangue, o que é um átimo ante os muitos que trafegam pela 381 há pelo menos uma vida.</p>
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Porém, não quero tratar aqui do que todo mundo já sabe. Os perigos da BR são mais que conhecidos, as curvas traiçoeiras, as constantes mortes, os congestionamentos, enfim, tudo o que nos faz ter pavor de circular por esse verdadeiro pecado patrocinado pelas tão sérias ‘otoridades’. Comentarei aqui uma mudança de postura.</p>
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Como sou gordo, muito me atraem as guloseimas de beira de estrada. Meu Deus, quantos pães com linguiça já comi, quantos pastéis fritos (de carne, sempre) já desceram goela abaixo, quantos enroladinhos de salsicha, coxinhas de catupiry e empadinhas (sem azeitona) já me fizeram feliz na rota Rio Piracicaba-Belo Horizonte. Não há gordo nesse mundo que não se atenha às calorias oferecidas pelas rodovias. A pouca importância dada à higiene confere sabor a essa modalidade de rango, uma constatação severa à qual cheguei. Seguindo essa temática, tratarei do Amigão, aquela lanchonete onde todos os funcionários nos tratam por esse substantivo flexionado no grau aumentativo.</p>
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Na estrada, sempre me pautei por um mandamento: coma onde os caminhoneiros comem. É batata, com o perdão do trocadilho. Caminhoneiro gosta de comida pesada, bem temperada, farta e com preço bacana. Sem frufru, com talher de acabamento plástico azul, molho de pimenta à mão, Coca-Cola KS e grande oferta de guardanapos. Não é à toa que eu e os caminhoneiros somos parentes de barriga.</p>
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Respeitando meu senso de sobrevivência, logo reparei que o Amigão tinha como clientela preferencial os profissionais do volante. Não hesitei e rapidamente me tornei mais um frequentador daquela orgia engordurada, saboreando o mexidão troglodita, o caldo de feijão, a canjiquinha com generosos pedaços de costelinha de porco, o próprio pão com linguiça, que no caso estava mais para linguiça com pão, e tudo o mais que um gordo tem direito de comer. Aliás, como diz um amigo meu, gordo só pensa em duas coisas: comer e emagrecer.</p>
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Pois bem, foi com apreensão que detectei aflorar no proprietário, que penso se chamar Amigão, o espírito empreendedor. Tudo começou com a preparação de uma área enorme ao lado da cabana de madeira que até então dava abrigo a nós, clientes. O interessante é que ninguém reclamava do poeirão que invadia os pratos a cada carro que estacionava. Era, na verdade, mais um ingrediente.</p>
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Em pouco tempo começaram a brotar no descampado toras de madeiras, a movimentação de trabalhadores se intensificou e ficava claro a cada dia que a velha cabana de madeira, que na verdade camuflava um trailer, estava destinada ao desaparecimento. O Amigão estava crescendo.</p>
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Veio-me à cabeça uma velha história soprada em circuitos universitários. Perto da faculdade existe um bar, que é bem caído. Uma turma começa a frequentar o local, que tem mínima infraestrutura, basicamente copos, cerveja, um mictório e uma dúzia de cadeiras. O dono começa a enricar, porque universitário bebe muito. Pensando em aprimorar o negócio, a primeira coisa que o proprietário faz é tascar um azulejo branco naquela parede antes manchada por uma espécie de fuligem cinzenta. Daí em diante o processo é rápido e culmina na instalação de vasos de plantas como decoração. Está decretada a falência, pois a turma gostava mesmo era do ambiente tosco, que dá um ar mais ‘lado b’, tipo revolucionário da carochinha.</p>
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Há uns dois meses o New Amigão foi inaugurado. A coisa ficou bonita, madeira pra tudo quanto é lado, espaços amplos, mesas a rodo, grandes vidros Blindex, enfim, tudo como pede o figurino.</p>
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Imaginei que a mesma sequência descrita sobre o bar de faculdade acometeria o Amigão. Mas não, o negócio está bombando, lotado, lotado, sempre lotado. Self-service sem balança (R$13,90), os mesmos caldos, o mesmo pão com linguiça e o capricho de instalar a carcaça de um trailer bem na entrada, isso para que ninguém se esqueça das origens daquele lugar. Porém, percebi um importante detalhe: os caminhoneiros sumiram. Posso estar enganado, mas não os tenho visto por lá.</p>
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No lugar das carretas, dos bitrens, dos basculantes, insignificantes carros de passeio ocupam as vagas do estacionamento, que continua precisando de um calçamento. Carregamos certos traços durante toda a vida.</p>
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Assim, infelizmente, serei obrigado a deixar de frequentar o Amigão. Tenho preceitos arraigados que nunca poderão ser negligenciados. Algo ocorre naquele reino e não serei eu o monarca degolado. Se os caminhoneiros mudaram de praça é por um bom motivo, que ainda não sei qual é. Talvez seja o mesmo efeito ‘bar tosco de universidade’, talvez os homens do volante se sintam como nós, enquanto universitários, nos sentíamos quando perdíamos um canto que refletia uma suposta identidade.</p>
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Só sei que estou à procura do novo point na 381. Tenho algumas suspeitas, principalmente aquele restaurante em frente ao Gauchão. Tenho visto grandes movimentações por ali e o menu do ambiente casa perfeitamente: mexidão, pão com linguiça, preço bom...</p>
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Que os gordos fiquem tranquilos, manterei vocês informados.</p>
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Contato: thobiasalmeida@gmail.com</p>