16/07/2013 18h00
Lusco & Fusco - O Brasil precisa de marcianos
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Em tempos de calorosas discussões sobre a vinda de médicos estrangeiros direcionados para o atendimento da população residente no Brasil profundo, ocupa minha mente as histórias do meu avô. É sempre arriscado escrever sobre parentes, isso por dois motivos: caso o texto fique bom, hão de acusá-lo de puxa-saquismo explícito; por sua vez, caso a construção saia torta, você pode desagradar os de casa e gerar um conflito nuclear à beira do fogão. De qualquer forma, sigamos adiante.</p>
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Meu avô, José Couto de Almeida, ou simplesmente “Zé Coto”, maneira pela qual a boca popular o chamava, era um daqueles práticos farmacêuticos salva-vidas. Vivendo e trabalhando no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, passou décadas tratando do povo. Médico até existia, mas era artigo de luxo. Para entendimento da moçada mais nova, o prático é aquele que domina uma área sem ter diploma universitário, no caso de Zé Coto, é aquele que aprendeu o ofício da cura na lida diária em uma farmácia.</p>
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Como medir a importância de um sujeito como meu avô em uma cidade pequena do interior mineiro, isso lá pelos idos das décadas de 1950, 1960, 1970? Uma das formas é pelo número de pessoas que, ao saberem do meu parentesco com o homem, o elogiam e soltam a frase típica: “Se não fosse seu avô, minha filha (ou minha esposa, ou minha tia, ou meu pai, enfim) teria morrido”.</p>
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Sinceramente, não foram duas ou três vezes que escutei tal afirmação, foram dezenas, principalmente da população rural. Houve um tempo em que meu avô rumava para a roça no lombo de burro para acudir muita gente já desacreditada, que não conseguiria sequer se deslocar até a sede urbana de Rio Piracicaba. Atendia de graça também, mas nem me alongarei no assunto para escapar do pedantismo.</p>
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“Zé Coto” deixou um legado na saúde de uma pequena cidade do interior. Virou nome de medalha do Legislativo Municipal. É reconhecido por todos pelos serviços prestados à população. Óbvio que deve ter cometido seus pecados, afinal era um reles mortal que nunca se candidatou a santo. Não importa, o trabalho de sua vida foi recompensado e repassado adiante pelas mãos de alguns dos filhos, entre eles meu pai, Leon. O intuito aqui não é elevar a família, mas sim tratar de um caso atual tendo em vista uma ótica do passado.</p>
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Sou favorável ao projeto do governo de importar médicos para reforçar o atendimento no interior do Brasil. Muitas cidades brasileiras, em pleno Século XXI, estão da mesma forma que a Rio Piracicaba de 40, 50 anos atrás. Inclusive, a própria Rio Piracicaba passa por uma situação crítica na área, o que não é exclusividade, diga-se. Há o agravante de não mais existirem práticos salva-vidas como antigamente na maioria dos lugares. Temos de entender que o problema em muitos municípios não é a insuficiência do número de médicos, mas a inexistência dos mesmos.</p>
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A situação é grave. Segundo artigo publicado na Revista Brasileira de Educação Médica em março de 2011, 63% de um universo de 1.004 alunos de medicina pesquisados, provenientes de 13 cursos espalhados por seis estados, querem se tornar especialistas. Por outro lado, cidades pequenas precisam dos chamados clínicos gerais.</p>
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Um hospital do interior, em 99% dos casos, não tem condições financeiras de contratar um pediatra, um geriatra, um neurologista, um ortopedista, etc. Ele conta com o profissional que tem a capacidade de resolver casos de baixa e média complexidade em várias áreas da medicina, o que alcança a maioria dos pacientes que recorrem ao SUS em uma pequena localidade.</p>
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Outro dado revelador: apenas 5% dos alunos pesquisados declararam ter a intenção de trabalhar em municípios acanhados do interior. Além disso, mais de 50% dizem que escolheram a profissão por vocação, mas desconhecem o papel do médico como um dos pilares de uma comunidade.</p>
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Soa como corporativista a reação contrária e furiosa das entidades médicas à proposta. Parece-me que elas buscam acima de tudo interditar o debate ao invés de buscar o diálogo para aperfeiçoar os pontos que julgam falhos, como é o caso do processo de validação dos diplomas de profissionais estrangeiros, o Revalida. Há ainda um ranço ideológico de fundo, que tornou-se claro quando anunciada a vinda de médicos cubanos.</p>
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Conselhos de medicina criticam e prometem boicotar o plano, mas não apresentam solução alternativa. Sim, houve falhas por parte do governo na apresentação da proposta, houve falta de sensibilidade política na lida com a categoria, aliás, erro frequente em Brasília nos últimos tempos. Porém, o mais importante é que um ponto crítico da realidade brasileira ganhou luz, algo que precisa ser equacionado urgentemente.</p>
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Os tempos românticos de homens como “Zé Côto”, que venciam o improvável dia a dia, se foram. São exceções os que ainda hoje desenvolvem tal papel. Grande parte dos brasileiros, como aqueles perdidos nos igarapés amazônicos, nos sertões nordestinos ou nas roças de pequenas e comuns cidades interioranas merecem e precisam de respeito. Vidas precisam e podem ser salvas.</p>
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Como escreveu de forma certeira Zé Simão: <em>“</em>S<em>e</em><em>eu estivesse doente no interior do interior do Ceará, eu queria um médico humano. Tanto faz paulistano, cubano ou marciano”.</em></p>
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<strong><em>Contato: thobiasalmeida@gmail.com</em></strong></p>