09/07/2013 18h00
Lusco & Fusco - Um Conto de Nadas
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A tranquilidade era um traço marcante daquele reino encrostado nas bordas da Serra de Dulcelar, que abrigava um charmoso vale pode onde corria o caudaloso Rio Abacicarip, rico em tudo que se podia querer: peixes, minérios, água potável e um largo e plano leito que facilitava o descer e subir das canoas dos mercadores. O reino, chamado Orieziuqej, nome emprestado das altas terras eslavas, era governado pelo Rei Rudesco, corpulento monarca que fora elevado ao trono depois da tragédia que se abateu sobre a antiga família real, os Atoc, todos expurgados daquela porção verde de chão.</p>
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Rudesco governava soberano, sem ameaças, sem levantes, sem sabotagens. A população de Orieziuqej era conhecida por sua mansidão, por preferir deixar que as coisas corressem soltas na esperança de que tudo desse certo mais à frente. O humor daquele povo abominava qualquer atitude que se assemelhasse ao confronto. Pacatos, cultivavam um estranho acanhamento de reivindicações, isso tendo em vista as ruidosas necessidades com as quais conviviam.</p>
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Poucos Senhores da Ordem dominavam os escassos postos de trabalho, a maioria voltada para a produção de víveres de primeira necessidade, uma vez que a sofisticação passava ao largo daquela cercania. O principal era o Senhor Elav, mandatário de vestes importadas e fala polida, que transmitia pela imagem ser um daqueles fidalgos de fino trato. Na verdade, era um ser implacável desprovido de sentimentos que não tinha como prioridade a qualidade do viver daquela gente.</p>
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O Senhor Elav contratava, pagava e exigia, e tinha em conta sua tarefa como completa nesses termos. Nada de reconhecimento, de agradecimento, de relacionamento com a massa descamisada que lhe enchia os cofres. “Eles estão em melhor situação do que no tempo da escravidão”, vez por outra soltava à mesa em um dos suntuosos jantares que frequentava, ele e todos os poderosos de Orieziuqej.</p>
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O Rei Rudesco também gostava de se empanturrar nessas verdadeiras orgias gastronômicas, onde todos comiam e bebiam muito mais do que o necessário e recomendável. E foi em um desses convescotes do exagero que o Senhor Elav soprou ao ouvido do monarca de cintura elíptica a idéia que viria a se transformar na ruína daquela dinastia. “Meu nobre Rei, acolhe-se em um palácio deveras humilde. Não é de bom tom um homem soberano viver tão apagado perante a plebe. Aconselho que Vossa Majestade se apresse a construir um forte digno das Arábias, com torres a perder de vista, mármores da Pérsia, talhos de mestres artesãos, enfim, tudo que um ser escolhido por Deus de fato merece”, disse Elav, sorvendo uma taça transbordante de vinho.</p>
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Rudesco se sentiu atraído pela idéia. Na mesma semana, toda Corte estava a par e empenhada em materializar a intenção do Rei. Em meio aos movimentos histéricos de condes, damas de honra, duques e chefes da Guarda Real, Ominona, um dos conselheiros mais sábios do palácio, requereu uma audiência com o monarca. Prontamente atendido, iniciou sua fala: “Vossa Majestade está a cometer um erro. Gastas uma fortuna em algo que o povo não vê necessidade. Pior, o Mago Latipsoh e o Curandeiro Eduas estão se esvaindo depois que Vossa Alteza cortou a ração diária a eles enviada. O nobre Rei errou, eles dependiam sim da ajuda do palácio. E lembre-se que a plebe tem estimação elevada por aqueles homens que já fizeram verdadeiros milagres por essas terras”, alertou Ominona.</p>
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A ressalva não acometeu o coração real. As obras faraônicas continuaram. A Corte preparava com afinco e dedicação nunca vista os festejos da inauguração. Azeitonas do Mediterrâneo, taças de cristais da Itália, temperos da Índia, fogos da China, tudo de primeira linha e coberto pelo empréstimo tomado por Rudesco junto ao reino vizinho de Edavelnom, que vinha junto a promessas de cessões das terras mais férteis e ricas de Orieziuqej.</p>
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Tudo estava pronto. As damas ornadas pelos novos vestidos. Os cavalheiros em trajes de gala. As portas foram abertas apenas para os afortunados. O povo, de fora, assistia o frenesi em meio à lama e ao estrume das cavalarias que não cessavam de entrar naquela obra de arte da arquitetura. Foi quando Rodalaf, espécie de homem das notícias do reino, chegou esbaforido à praça e esbravejou: “O Mago Latipsoh morreu de fome! O Mago Latipsoh morreu de fome”. A notícia estarreceu a todos, que já estavam abatidos pela notícia de que o Curandeiro Eduas havia partido para outras paragens, pois estava à míngua e nada foi feito para confortá-lo.</p>
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De repente, uma voz grossa rompeu o silêncio de alguns e se misturou às lágrimas de vários coitados: “Queimem tudo! Queimem tudo! Queimem tudo!”. A multidão não hesitou. Tochas foram lançadas rumo ao palácio, os poucos soldados que reagiram foram mortos, a maioria dos guardiões fugiu. O fogo se alastrou. O cheiro da gordura humana em chamas inundou a praça e se misturou ao odor fétido das fezes de animais. Pouco a pouco paredes vieram ao chão. Ninguém conseguiu deixar a magnânima construção. Crianças também arderam. Refugiado em seu banheiro, prestes a desmaiar em decorrência da fumaça, Rudesco soltou suas últimas palavras: “Nunca gostei desses merdas fedidos!”.</p>
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Ao longe, assistindo a tudo calmamente, o Senhor Elav saboreava um grande e robusto charuto. Um sorriso marcava-lhe a face. Serenamente, degustando de sua astúcia, o homem de negócios mirava o nada e imaginava o que faria com o reino que acabara de cair em seu colo.</p>